quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Jump into the dark pool



I
Solta-te, executa um movimento transversal em paralelo com a arte digna de contorcionismo de um moribundo bailarino profissional. Executa uma manobra transcendente, sem o auxílio da protectora rede de segurança. Mesmo que a cruel morte já espreitei à esquina de afiada foice em riste, que vai ceifando vivacidade amiúde. Sabes à partida, que nem tudo irá ficar bem. Nada acabará eventualmente bem. Desprezas o copo meio cheio, meio vazio de bebida anestesiante. Evitas e não ligas peva aos espécies de finais semi-perfeitos, debuxados a sorrisos luzidios. Meramente forjados em tela cinematográfica, ensaiados de forma pomposa para comprazer dos tolos de amor. A televisão desligada e teimosa, não os para de emitir. Teima num embirração latente em devolvê-los à cara desarmada, nada irá ficar bem. Concluís. E daí? Desde quando te habituaste a conviver de braço dado com a resplandecente fortuna; a suprema e imponente felicidade. Nunca em momento algum da história transacta, foram mais que vulgares conhecidos às turras. Foram-se cruzando pelas ruas íngremes da angústia. Pelos recantos obscuros pintados de amargura de desilusões contínuas. Se o que desejas é porventura uma amizade íntima com o gáudio, o cenário cintilante, encontrasse completamente posto de parte. É à partida um caso dissolvido, perdido entre acordes e gemidos que ecoam e esvoaçam de uma triste guitarra, que vendeu barata a alma, ao mais afoito fado castiço.


II
Sentas-te só, na maior solidão, sorte do luar que te tem a ti. Só aqui vieste para contemplar a vista desértica e fantasmagórica que te preenche o vazio. Que agora quase te absorve as entranhas findas por completo. Não te deverias ter deixado embalar por tamanhas notas de uma musicalidade dançante, que enfeitiça até, o mais sábio dos marinheiros. Quase te obrigam a sucumbir face à pureza da sua fragrância eloquente de Olimpo. Grita, inspira e expira apressadamente de forma descontrolada. Deita cá para fora, o tanto que prendes e sufocas nesse nó de garganta, nessa alma mal amada. Assume o teu potencial, afirma a tua personalidade aguerrida. Hoje és tu lá em cima, és tu vestido de artista principal que assola o palco num solo arriscado. Os holofotes reflectem o teu brilho interior. Por mais quanto tempo serás refém dessa tua pele pestilenta, até quando serás prisioneiro incondicional de ti mesmo, dessa pesada e tenebrosa mascara que quase te obstrui a visão. A tal que te impede de ver o mundo com a transparência despreocupada, de quem já nada espera realmente.


III
Largas os sapatos de ténis à deriva pelo corredor fora. Maldizes o impacto colateral que isso terá no andar da vizinha de baixo. A solução carece de uma solução efectiva e eficaz. Preparas resignado algo para bebericar, por norma para dois, ainda que sem companhia à vista do que mais, que os habituais móveis e sofás gastos de uso. Chamas-lhe a força do velho hábito de monge. Agora aqui recolhido, suspiras à janela da sala. As gotículas de chuva, cobrem e envolvem o parapeito descuidado de limpeza. Sente momentaneamente um ardor antigo, a queimar precisamente no local onde em tempos repousou um coração aquecido a afectos, movido a emoções palpitantes. Uma nostalgia paupérrima arriscasse a tocar à porta, mas fica sem resposta. Deitas o olhar ao arcaico relógio de parede herdado às custas do teu bisavô, e constatas o avançar tardio das horas. Tarde, demasiado tarde, para sequer colocares a mera hipótese, e deixares dançar sobre ti o leque das suposições.

IV
Assustaste, atemorizaste, mas esta noite, és outro alguém. És outro tu, encarnando outro dos teus inúmeros heterónimos, que habitam a tua casa vazia de presença física. Nessa grande, desconfortável e desconhecida residência. Não te importas com o facto consumado, a conjectura dos factores assim obriga esta madrugada. Repousas finalmente a cabeça no seio da almofada apática, sem com isso acarretar a dependência de um outro alguém. Faz tempo que desconhecias essa realidade, que agora te entra pelo meio dos olhos e te entenebrece os sonhos. Saboreias uma última golfada de ar puro e consciente. Amanhã, ao despertar, não terás tanto seduzo. Mas, e daí?

2 comentários:

Terapias Pra Neura disse...

Já saltei!
E quem salta jamais volta atrás...
Beijo

S* disse...

Hummm todos escondemos dentro de nós múltiplas personagens. E é bom ir conhecendo cada uma ao longo da vida...

Amanhã, amanhã pensas nisso. Hoje sente.