sábado, 19 de fevereiro de 2011

distance is nothing


O calor tropical amiúde, nasce como que do mais gélido e torturante frio árctico. Retórica adjacente e perdida. Da nebulosa sombra nasce a luz ténue e límpida que me entra janela de casa dentro. Lá estás tu reflectida - és cada traço aligeirado, o fio condutor de uma história encalhada no compasso do espaço e do tempo. Reergues-te de um livro acomodado numa prateleira de madeira bem tratada onde repousavas ténue figura. O medo erosivo de te desfolhar, folha-a-folha corrói-me. Medo de acordar, que te desmorones, tamanha delicadeza acarretava o movimento translativo de te sonhar. Se me queres, faz com que saiba, faz-me embarcar nesta aventura tão propícia e ajustada às circunstâncias do coração com que nos deparamos. Vê-me de mala feita, pronto a embarcar. Basta um gesto convidativo uma palavra afectuosa, movimenta-te de forma a fazeres-te notar. Dá corda a caixinha de música que enfeitiça o meu mundo, dança tal e qual a bailarina que transportas no interior de ti própria. Visualiza o nosso reino comum, numa viagem de palavras com simbologias inequívocas que confundem o olhar corriqueiro. Um quase código secreto que sobrevive e não se desfaz face à distância, e ao ruído envolto no turbilhão de emoções compartilhadas sem presença física. Sem o poder intemporal do toque que se grava na alma. Ardo em vontade de não mais ter que partir de um lugar que ainda não alcancei, mas que já sinto meu. Um crescente sentido de decorar a palma da tua mão de encontro à minha. Sem o imaginares vais transportando o meu coração e elevando-o a patamares desconhecidos. Se já te tentei desenhar, hoje escrevo-te, imagino-te palavra atrás de palavra como o mais belo poema escrito à luz de vela, uma mão cheia de dias que já se passaram. Daqui aperto-te de encontro ao meu peito, aí talvez só sintas uma leve brisa, vestígio breve da minha presença pouco notada. Decisões são tomadas, numa demanda que só vivemos uma vez singular. Perco-me na lua, e viajo nas estrelas, só queria, que esta noite visemos o mesmo céu de forma cúmplice, ainda que numa perspectiva distinta. Sussurro ao vento palavras de embalar, que se estiveres sozinhas por certo te irão aconchegar. Escuto guitarras nostálgicas que podiam anunciar a tua chegada, abro os braços e entrego-me à escuridão desconhecida, sonho-te acordado uma e outra vez. Em que caminhos andarás tu esta noite? A distância nada é.

domingo, 23 de janeiro de 2011

abstinência contida.


O vulgo recipiente de afectos amargurados forjado a ferro e fogo, outrora numa demência transbordante, e embriagado de si mesmo, repousa neste ínfimo instante, cálice fracturado de abstinência descaracterizada pelo angular desgaste corrosivo do vai e vem dos ponteiros lineares. Tempo efémero que nada sustem, paredes de betão franzinas expostas ao frágil sopro da brisa do vento. Contrariamente ao que é dito, nada dura, nem tem por certo o poder de durar para sempre. Nada ostenta o domínio da eternidade e muito menos da imortalidade. Tudo pode afinal, encontrar substituto à altura caso exista vontade férrea e celebre do coração. Momentâneos - todos somos. Entrego-te pedaços de alma mastigada e retalhada a preceito, radiografia de uma mente escrutinada por quem escolhe e deixa-se escolher. O ontem foi hoje, o futuro é escrito de passado presente do que já vimos acontecer. Experienciámos o que ainda não sentimos, mas imaginamos saber de cor, tal e qual a debutante sensação à flor da pele. Faz arrepiar o que nunca te tocará de verdade. Como podemos de facto sentir pela primeira vez paladar de futuro, se já o vimos acontecer, alojado em nós. Aqui estamos nós, e não vamos, não partimos. Apresentaste numa nova perspectiva arrumada para parecer radicalmente diferente. Caminhamos sob os mesmos e idêntico carris, perpendiculares a nenhures de tão peculiares que são. Viajas numa velocidade distinta. Abstenho-me de pensamentos amovidos, entrego-me em acções, deixo-te fluir em mim, livremente sem compromissos. Corres desenfreada, fruto de um trágico desejo compulsivo. Alimenta-te de necessidades prementes sem deixar vestígios.

A noite gélida passa a dia, e evolui rapidamente lá fora. O teu coração bate quente, ainda ofegante, quase queimando e contagiando o meu adormecido. Dás motivo e força à causa. Fogachos imediatos que não se extinguem, o elucido pensamento descrente que se compõe. Enche-me de esperanças vãs, talvez não naufraguemos e cheguemos porventura a bom porto. Desvanece-te solidão: uma corda roída, e um agora ou nunca de ocasião. Aposta a última ficha sem crença, deixa cair a moeda desconhecida. O carrossel num solavanco ameaça movimentar-se. A mente é vagarosa, demora a processar o que já circula nas veias. Demora-se em pormenores, perde-se em padrões não padronizados. Existe um lugar vago, pleno de oportunidade. Quando dás por ti, já te moves lesto e expedito na pista de dança, tentando acompanhar o ritmo do teu par.

domingo, 31 de outubro de 2010

Symphony.


Atravessaste-te num ápice à minha frente. Patenteaste-te na minha rota e num assombroso colocaste o pé na primeira risca da passadeira que nos separava. Cruzaste e ludibriaste o destino só para que me fosse possível contemplar a tua face translúcida e jovial. O propósito tem destas incoerências, tem destes desatinos, que nos baralham e trocam as voltas da alma. Coloca-nos como que entre a espada e a parede, coloca-nos numa espécie de avesso que desaprendemos a reconhecer tamanha é a falta de prática. Vemo-nos apanhados desprevenidos quando acasos do género ocorrem. Ou será que sempre estiveste predestinada a entrelaçar-te comigo, só para me provares que é possível sorrir, mesmo quando me encontrava – desesperadamente - a empreender uma marcha de fuga à velocidade da luz das trevas alarmantes. As excepções sempre ocorrem quando não as desejamos e muito menos as esperamos embrulhadas a papel reluzente à porta de casa. Desconfiado limitei-me a observar-te enquanto colidias violentamente com a serenidade da minha existência, colocando em desvario a pacatez do meu dia-a-dia enfadonho.

Assim eras tu, vinhas vestida de imprevisibilidade em estado imaculado. Despida de quaisquer desígnios ou mesmo objectivos. No marasmo de um mar de almas idênticas eras genuinamente tu. Tinhas para oferecer aquilo que com precisão eras, nada mais. Tu que preenchias com uma palete de cores às cegas um espaço austero e desprovido de conteúdo estético e harmonioso.

Enquanto lutava por extinguir fogos envelhecidos que teimavam em tentar o prado das paixões mortificadas, surgiste do nada e obrigaste-me a ficar cansado de escrever sobre negrume. Sobre o preto que cobria a minha subsistência momentânea. Anunciavas que vinhas em missão, cavavas o buraco onde enterraríamos juntos a sepultura de todas as dores antecedentes. De repente luz ao fundo do túnel, quando quase já tinha esquecido o aroma e o sabor renovador de primavera que sempre dá azo a um novo amanhecer. Afinal todos os invernos têm um fim merecido, por mais rigorosos e prolongados que possam sugerir ou mesmo parecer.

Enverguei a alegria esquecida, vesti um sorriso contagiante com urgência de um aprendiz e saí. Saí à rua radiante por te encontrar, por te descortinar novamente no meio da multidão de caras indecisas e maldispostas. Queria sentir o arrepio eléctrico que percorre o corpo por completo, aquando da descoberta que é contemplar-te dia após dia e confirmar que continuas irrepreensivelmente perfeita. Fechei os olhos para idealizar mais uma vez o sonho que são os teus traços. Sacudo de cima de mim os pingos de chuva esquecidos. Todos os poros irradiam anseio por sentir o calor da tua mão na minha. Tenho-te como um quadro abstracto que só eu consigo descortinar e perceber a tua real essência. Dás vida colorida a lugares onde reinava a descrença. O teu plano é perfeito, mesmo que não tenhas nenhum. Mesmo que não passes de ficção na minha mente, soas como a mais doce sinfonia.

domingo, 24 de outubro de 2010

O Capítulo que ninguém leu.

Avisto um caminho difuso a encruzilhada surge apressada arriscando engolir-me. Sinto-me sem dar fé de tal conjectura. Acordo do pesadelo hediondo e encontro-me subjugado à beira do precipício que sou eu próprio. Domesticado pela robustez dos meus atordoados pensamentos. Tem vezes que me perco. Tem dias que te encontro. Encontro-te assim, com quem num acaso revê uma velha companhia que ficou acomodada num passado longínquo. Abandonada às portas de um episódio transacto e prescrito por lei. Encontro-te em palavras que não quero, que não minhas. Tropeço em letras de outros e de sua autoria. Por lá vejo-te e identifico-te sem complicação de forma descarada. És tu. À primeira vista desenho a hipótese de não passares de uma miragem num deserto sem pingo de cor. Vulgar desconhecida face à pequenez da caligrafia que sugere uma lupa arcaica para sua percepção parcial.

Com a proximidade vai-se aguçando o interesse, incendeia-se a fogueira dos sentidos. Frases tornam-se cúmplices, claras, assustadoramente perceptíveis. Trazem-te acorrentadas contigo, acompanhadas da tua essência sem significado. Melodia melancólica e corrosiva no virar de uma página que se desfolha, que se desgasta, ficando para trás esquecida. Talvez nunca mais visitada. Limitando-se a ser peça que proporcionou vida a um enredo montado e contínuo. Espreitas-me dessa fresta figurada, vislumbre do teu aroma que se apaga. Por momentos momentâneos o teu perfume ataca-me o sistema nevrálgico. Confunde-me as coordenadas. Vislumbro-nos separados no papel límpido e incólume de uma obra que ninguém ousou tocar. Por breves instantes dura uma luta de colossais gigantes com a complexidade dos destinos que não tem decifração. A bem dizer - temos tão pouco um do outro. Nada que nos una, que nos sustenha um no outro. Tal e qual como no firmamento, separados por galáxias disformes e tremendamente remotas. És sentimento oco, sem nome nem rosto a quem atribuir transgressão. Às vezes chegas-me às mãos sem saber de que destino acorres. De que autocarro desceste. De que braços te desprendeste e encostaste a mim. Desconheço de que cruzada advéns. Assaltas-me o pensamento e trocamos palavras corriqueiras de quem mais nada tem para apresentar e partilhar e ficamos assim - suspensos sem propósito. Hoje cruzei-me contigo em palavras que não são minhas, muito menos saídas do teu esboço. Palavras que nada nos dizem, a outros dirigidas. Encontrei-te impingida em letras de desconhecidos. De terceiros que pareciam tanto de nós saber. Pareciam sussurrar segredos nossos. Por nós trocados em tons soltos de confidência em cidades e locais que se desmoronaram.

Já nada tenho de ti, uma mera fotografia que me faça avivar a memória que partiu para longe numa viagem sem destino nem regresso. Selámos malas carregadas e bagagens acondicionadas de sentimentos agridoces. Nunca trocámos despedidas nem promessas de voltarmos a destinos onde fomos felizes. Ninguém o fez face à sensação de ter batalhado numa guerra santa sem fundamento. Hoje encontrei-te no local mais improvável de te ter descoberto. Quando olhei bem para ti vivias em mim alojada, clandestina sem pagar aluguer. Assustei-me com a descoberta, com o facto absurdo com que me deparei e por lá te deixei habitar. Encerro-te em mim para não ter que conviver com o fantasma que assombra o nosso livro quimérico de recordações.

sábado, 2 de outubro de 2010

Tela vazia. Retrato de um Domingo.

Confundo-me com um domingo vulgar. Os domingos são assim, telas vazias. Ecoam desprovidos, escasseia o ruído abunda o silêncio estridente. Um domingo é nostalgia que caminha discreta sem se deixar ver pelas ruas desérticas, sem deixar vestígio à espreita. Vai incendiando tudo aquilo em que um dia ousei acreditar. Cometi momentaneamente a imprudência de pensar que num destes dias conformes, seria completo de felicidade de facto. Limito-me por ora a ser, ser resto. Resto de sonhos; resto de almas esventradas e destroçadas de coeficientes incógnitos que causam pesar. Retiro às palavras brilho, tendência suicida de as embelezar e abrilhantar com o que de real nada possui. Martírio numa envolvência crescente que se apresenta mascarado de veracidade.

Tento apressadamente fugir à vulgaridade com que me assemelho. Sombra de um Eu maior, que passeava triunfante, com a perdida e longínqua áurea, que agora se desvanece em pedaços desconformes. Quando quase te encontrei naquele acaso, como sempre acontece, pensei estar insano e perdido. Ter batido à porta errada. Olhei a rua duas vezes, num trejeito de confirmação. Observei-te e continuavas no mesmíssimo local, onde te encontrara. Ali estavas tu, davas-me troco, parecias feliz. Fazias-me crer vencer a curta distância que nos sustinha separados. Senti-me num ápice abastecido de contentamento. Vi-me impelido como um satélite fora de rota e controle, de encontro à tua invulgar capacidade de preencher os meus dias sisudos, transformando a minha expressão facial em sorrisos que perduram. Senti-me tentado a retribuir-te na mesma moeda. Mas assim que olhei para mim, encontrei-me de mãos cheias de um nada que se esvazia perante o tudo que era a tua feição imaculada. A mim confundi-me com a ninharia, que tudo lhe falta. Vejo-me correr neste circuito fechado, neste círculo demasiado perfeito, de modo a apresentar brechas por onde escapar. No percurso nenhuma escapatória possível fora detectada, a fim de virar costas a esta triste dormência, velho fado sabido.

Sempre falho. É fácil falhar quando me vejo no papel principal, maestro de banda que não afina, tentativa após tentativa forçada. Não gosto de domingos, como poderia não gostar de sábados. Afligem-me a alma, consomem-me o calor que vai sobrevivendo ténue. Em paralelo com a relatividade da tua presença espiritual, física ou vice-versa. Tudo é relativo quando não partilhamos o mesmo chão. Quando não existem mãos apaziguadoras para acalmar. Lembro-me de despedidas forçadas, efectuadas em domingos nocturnos. Ruídos de comboios estridentes a partir rumo ao desconhecido pardo. Ficam os sonhos que não ousamos contar, ou mesmo realizar. Falta de coragem ou medo de ir mais além, há quem diga.

domingo, 19 de setembro de 2010

Broken Garden

I
Perdido neste insípido banco de madeira. Neste escuro e sujo assento, perco-me e encarno em mim o mundo exterior. Deixo-me ficar prostrado no jardim que floresce agora, fruto de um sol madrugador que trás com o dissipar da neblina matinal, a renovação do clico de vida e espécies que rebentam continuadamente. Observo mudo no mais caricato silêncio interior, acompanhado somente pela astúcia cirúrgica, o reboliço mecanizado que vigora e exala em minha volta. Alheio a qualquer espécie de interacção ininterrupta, rodopio suave e lentamente a mente. Que vai esboçando geometricamente a régua e esquadro, panoramas fictícios ao compasso do som. Melodia composta e delineada por acordes rectilíneos e estridentes que me vão chegando. Cismam em não mais chamar-me à razão. É um dia bonito, verbalizam-me repetidamente ao ouvido de forma semi-coordenada e melosa. Arremessando ao mesmo tempo tamanha ironia em trejeitos mal disfarçados. O céu do seu alto afigura-se aperaltado, vistoso até no seu jeito engalanado de uma qualquer manhã de veraneio. Alheio vai reinando de cima no seu trono raiado a amarelo-torrado. Cá em baixo, vou até onde a minha caneta me leva, vagueio por vales de folhas de papel esbranquiçadas, que só em mim flutuam fantasiosas.

II
Já esqueceu uma fugaz e desgastada fábula arrojada, que em tempos remotos, teve para si como totalmente sua. Desígnio de vida, carregado junto do seu peito despido e queimado pelo desenrolar dos dias vãos de chama. Era na realidade fogo que consumia e ardia em volta de si mesmo. Era a chama fugidia e gasta que o aquecia, nas noites mais vincadas de frio árctico. O vento zunia-lhe mortífero aos ouvidos, era como que um inverno glaciar fora de horas, deslocado do relógio da sua estação de origem. O conto perdido fora alvo de um atentado ao pudor. Fora manietado. Elaborados planos foram alçados de forma arrojada para o desmoronar por completo, como um todo. Qual castelo de cartas pouco estanque. Foi tudo, não foi nada. Desvaneceu-se para logo de seguida, voltar a erguer-se com a força abrupta. E por fim extinguir-se, deixando atrás dele rasto de estilhaços dolorosos. Deixou de ser Fénix por um dia que durou uma eternidade. Deixou, por se cansar de voltar a reerguer das cinzas, por se cansar de sonhar. No dia em que se esqueceu de sorrir, desvaneceu-se permanentemente. Hoje é figura horripilante, que caminha descalço sob o solo moído e abrasador das tenebrosas trevas. Resiste debilmente à luz solar que o apoquenta, queima-lhe as pálpebras cansadas e desgastadas de jornadas sumidas. Já esquecida ficou a doce sensação do prazer de contemplar sem nada requerer em troca. Hoje beija descrente o lado negro, dá o braço de bom grado às forças malignas, descendo a avenida. Destila impotente ódio no olhar vazio, escurecido. Despreza o mínimo sinal de compaixão, ou mera bondade. Afoga-se na imensidão da fogueira dos seus inúmeros talentos, empoeirados e esquecidos. Encostados à viola que não é tocada. Aos discos de vinil, que jamais ninguém ouvirá. Dá um trago e mergulha em si, escorrega num mundo sadio e cru. Vê-se refletido num espelho quebrado, com uma célula ínfima de uma equação complexa, sem solução à vista. Sem meios, sem fins, adivinha e antecipa um final precipitado. Já antes anunciado como tragédia grega. Se pelo menos tudo fosse tão mais fácil, como rebolar na relva fresca e relaxante do tapete verdejante do jardim. Deixar o cabelo esvoaçante e desalinhado ao vento sem preocupações de maior. Vestir-se debutante de esperanças e correr sem propósito. Correr com uma criança despreocupada que abre os braços ainda débeis de movimento organizado para abraçar o mundo novo de experiências. Ou o miúdo vivaço, que cheio de ilusões, chuta uma bola corroída, impregnado de fé nos seus anseios e sonhos ainda não reprimidos.

III
Lá atrás, em tempos idos, todos fomos assim. Partíamos risonhos à velocidade da luz da ombreira da janela do nosso quarto e descolávamos. Descolávamos em direcção ao nada, mas para o nosso tudo que idealizávamos. Partíamos para não mais regressar ao nosso próprio reino encantado. Reino que agora, só muito de fugida ainda visitamos de forma comprometida.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Jump into the dark pool



I
Solta-te, executa um movimento transversal em paralelo com a arte digna de contorcionismo de um moribundo bailarino profissional. Executa uma manobra transcendente, sem o auxílio da protectora rede de segurança. Mesmo que a cruel morte já espreitei à esquina de afiada foice em riste, que vai ceifando vivacidade amiúde. Sabes à partida, que nem tudo irá ficar bem. Nada acabará eventualmente bem. Desprezas o copo meio cheio, meio vazio de bebida anestesiante. Evitas e não ligas peva aos espécies de finais semi-perfeitos, debuxados a sorrisos luzidios. Meramente forjados em tela cinematográfica, ensaiados de forma pomposa para comprazer dos tolos de amor. A televisão desligada e teimosa, não os para de emitir. Teima num embirração latente em devolvê-los à cara desarmada, nada irá ficar bem. Concluís. E daí? Desde quando te habituaste a conviver de braço dado com a resplandecente fortuna; a suprema e imponente felicidade. Nunca em momento algum da história transacta, foram mais que vulgares conhecidos às turras. Foram-se cruzando pelas ruas íngremes da angústia. Pelos recantos obscuros pintados de amargura de desilusões contínuas. Se o que desejas é porventura uma amizade íntima com o gáudio, o cenário cintilante, encontrasse completamente posto de parte. É à partida um caso dissolvido, perdido entre acordes e gemidos que ecoam e esvoaçam de uma triste guitarra, que vendeu barata a alma, ao mais afoito fado castiço.


II
Sentas-te só, na maior solidão, sorte do luar que te tem a ti. Só aqui vieste para contemplar a vista desértica e fantasmagórica que te preenche o vazio. Que agora quase te absorve as entranhas findas por completo. Não te deverias ter deixado embalar por tamanhas notas de uma musicalidade dançante, que enfeitiça até, o mais sábio dos marinheiros. Quase te obrigam a sucumbir face à pureza da sua fragrância eloquente de Olimpo. Grita, inspira e expira apressadamente de forma descontrolada. Deita cá para fora, o tanto que prendes e sufocas nesse nó de garganta, nessa alma mal amada. Assume o teu potencial, afirma a tua personalidade aguerrida. Hoje és tu lá em cima, és tu vestido de artista principal que assola o palco num solo arriscado. Os holofotes reflectem o teu brilho interior. Por mais quanto tempo serás refém dessa tua pele pestilenta, até quando serás prisioneiro incondicional de ti mesmo, dessa pesada e tenebrosa mascara que quase te obstrui a visão. A tal que te impede de ver o mundo com a transparência despreocupada, de quem já nada espera realmente.


III
Largas os sapatos de ténis à deriva pelo corredor fora. Maldizes o impacto colateral que isso terá no andar da vizinha de baixo. A solução carece de uma solução efectiva e eficaz. Preparas resignado algo para bebericar, por norma para dois, ainda que sem companhia à vista do que mais, que os habituais móveis e sofás gastos de uso. Chamas-lhe a força do velho hábito de monge. Agora aqui recolhido, suspiras à janela da sala. As gotículas de chuva, cobrem e envolvem o parapeito descuidado de limpeza. Sente momentaneamente um ardor antigo, a queimar precisamente no local onde em tempos repousou um coração aquecido a afectos, movido a emoções palpitantes. Uma nostalgia paupérrima arriscasse a tocar à porta, mas fica sem resposta. Deitas o olhar ao arcaico relógio de parede herdado às custas do teu bisavô, e constatas o avançar tardio das horas. Tarde, demasiado tarde, para sequer colocares a mera hipótese, e deixares dançar sobre ti o leque das suposições.

IV
Assustaste, atemorizaste, mas esta noite, és outro alguém. És outro tu, encarnando outro dos teus inúmeros heterónimos, que habitam a tua casa vazia de presença física. Nessa grande, desconfortável e desconhecida residência. Não te importas com o facto consumado, a conjectura dos factores assim obriga esta madrugada. Repousas finalmente a cabeça no seio da almofada apática, sem com isso acarretar a dependência de um outro alguém. Faz tempo que desconhecias essa realidade, que agora te entra pelo meio dos olhos e te entenebrece os sonhos. Saboreias uma última golfada de ar puro e consciente. Amanhã, ao despertar, não terás tanto seduzo. Mas, e daí?