domingo, 2 de agosto de 2009

Chamada (in)terminável


Marcas o número de modo desenfreado, o toque corrosivo e apressado sobre as teclas denuncia e anuncia a tempestade que se avizinha. Atendo. Acusas-me ostensivamente de te ter usado. Fixo-te os olhos, cravados com uma perplexidade atónica, mesmo sem te visualizar. Mesmo que a distância que nos desfaça fisicamente seja intransponível. Bradas-me do outro lado da linha, num género intimidatório e numa forma acusadora. Dizes, mas não o sentes. Afirmas, mas não o vives. Obrigas-te a afirmá-lo numa tentativa inglória, pensado que se o exteriorizares eventualmente o facto se torne realidade.

Intimamente sabes que não. Puxo-te à razão. Trago-te à memória, noites onde dançámos perdidamente sob um céu estrelado e um lua nova tão mais cheia que o próprio universo. Na praia onde navegámos ao ritmo da ondulação cortante, rumo ao infinito. Um infinito estranhamente conhecido, que nos era proximamente familiar. Sei que escutávamos o suave embalar do mar, aquele que nos rendíamos. Aquele por qual nos deixávamos levar. Tu gabavas-me o sorriso. E eu deleitado, dava-te a mão e entregava-te o coração. Confessava-te embevecido, que uma estrela no firmamento brilhava só por ti, pela força da imponência da tua existência. Tu coravas e rias abertamente do piropo atrevido, tomando-o secretamente como verdadeiro. Deixávamo-nos embalar, esquecendo o rigor britânico dos ponteiros do relógio. Permanecíamos resistentes, até ao primeiro e glorioso raio de sol radioso, que se adivinhava como um anúncio de mais um amanhecer, que trazia consigo um misto de cores amarelo-alaranjadas que saltavam à vista, cabriolando por entre um arco-íris de emoções trajadas por nós.

Recordações mascaradas de areia suave, testemunha verídica de actos conjuntos, de gestos desenfreados, que agora repousam frios sobre a areia molhada. Já não te estendo a mão como antigamente e o coração mal palpita como outrora. Os sorrisos fizeram-se semi-sumidos por entre a névoa gélida que povoa a manhã. Por entre suplícios e injúrias, regateias vazia de fé, uma última viagem, aquele destino que à luz do momento se reveste pleno de despedida. Dás o melhor que reside em ti, entreabres as portas cerradas do coração, atravessado de ferrolhos austeros.

Os argumentos da tua emboscada atingem-me com uma veracidade asfixiante. Guias-me por um percurso sinuoso mas maldosamente reconfortante. Atraís-me para locais perdidos, arquivados de forma consciente nos confins da memória. No local onde jazem recordações significativas. Momentos confinados às noites escandecentes, onde a mera contemplação dos traços suaves do teu rosto emanava a luz, que era candeia na escuridão, que iluminava aquela praia perdida, toda ela, reflexo de um espelho de emoções.

As tuas acusações precoces esbatem-se nas recordações, que facilmente e sem esforço aparente superam essas reclamações. Amores que não se tornam imortais, imortalizam-se em momentos fugazes, que perduram na exclusividade da mente de quem os sentiu à flor da pele.
Desenhámos um inverno rigoroso numa paisagem vestida de pormenores veraneantes. Chove agora, gotículas pesadas, acomodam-se, vertem e molham rostos desprotegidos, despidos de afecto. Sentes-te invariavelmente sozinha, mas adoptas a saudade como companheira fiel. Faz-te companhia num pacto cruel mas maltrata-te. Não te abandona, mesmo quando lhe apelas vezes sem fim, quando é isso que na realidade queres. Embala-te, mostrando-te que o fim do mundo não é “isto”. Mostra-te que estás viva, tão viva, que se te mantiveres em silêncio, o mar tratará de te trazer na rebentação o burburinho de risos passados, risos cristalinos que compartilhámos longinquamente. Amaldiçoas o facto das pessoas especiais também mudaram, também abandonarem o que lhes é querido.

Dou por ti vertida, aninhada sobre a rocha que virou lenda, rasgas páginas vividas, queimas emoções sentidas, afogas sentimentos perdidos. Tudo é inesperadamente válido para apaziguar a mágoa que tolda todo um corpo… Desligas abruptamente na esperança que retribua a chamada de volta. Ambos sabemos que tal não irá ocorrer. Ainda assim, faz parte do jogo. É bom viver na ilusão de que é isso, que mantém acesa a esperança da ilusão dos amores infortunados. A réstia que te sustem viva. - Desligas? Desligo!

27 comentários:

Lídia Teixeira disse...

sabes adorei o teu texto.. é talvez o meu preferido x)
prendes-te a minha leitura e olha que para eu ler um post deste tamanho é porque gostei mesmo muito de cada palavra que ias escrevendo..


um post carregado de sentimento e nostalgia..
a nossa vida tem varios momentos, uns bons, uns menos bons, o importante é passar por todos.. e por vezes mais vale ficar na memoria com os bons momentos a estragar essas mesmas memorias com acusaçoes e trocas de argumentos sem sentido..
ha coisas que nunca acabam simplesmente se transformam.. e ha que saber aceitar isso mesmo..

desliga. e volta a ligar se achares que deves. desliga e segue em frente com os bons momentos na memoria.. fecha os olhos e pensa no que te fax bem e saberas o que fazer :)

beijinho*

ps:dclp d falei d mais :$

Lady L disse...

Quero ser a primeira a felicitar-te por tão maravilhoso texto. *.*
Nada do que eu possa aqui dizer,conseguirá sobrepor-se à grandiosidade e qualidade deste texto. É curioso, que ao ler-te imaginava-me nessa situação. E ia sentindo tudo o que aqui ias referindo. E é preciso um grande talento para conseguires isso de alguém.
Os mais humildes parabéns desta tua fiel seguidora ^.^
Um grande beijinho :)

Ana disse...

Adorei!!!

(sem +palavras...)
bjinho**

Joana ' disse...

Pode parecer cliché, mas, à medida que lia as tuas palavras, as lágrimas corriam incesantemente pela cara..
Sabes, poderia dizer-te que somos dois, apesar das nuances visivéis.
Eu já atendi chamadas e ouvi coisas que me magoaram, no entanto, também já recebi outras que me provocaram sorrisos sinceros de um coração alegre.

No fundo, ler a tua história fez-me pensar em mim e.. percebi que tens um talento extraordinário!
Fico sempre encantada com os teus textos..
Parabéns!

Beijinhos

Nessinha Moreno disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Flor disse...

Se perfeição existe... acabei de a encontrar.


As páginas que viramos estão sempre tão cheias de nós e não desejaria que antes estivessem em branco. Jogamos partidas perigosas e nem sempre saímos vencedores. Às vezes perdemos mais do que o desejado. Às vezes ganhamos mais do que podemos suportar.

beijo no coração*

Nessinha Moreno disse...

É muito ruim quando um sentimento deixa de existir apenas pra uma das partes de um relacionamento. Existe uma necessidade forte de culpar àquele que o deixou de sentir, mas a verdade é que não existem culpados. Sentimentos nascem e se apagam naturalmente, quase como se tivessem vida própria. E por maior dor que isso possa trazer, o melhor a se fazer é mesmo lembrar apenas das coisas boas e seguir adiante.

Como não pode deixar de ser, parabéns, mil vezes, pelo lindo texto. Me emocionou.

Beijos, André.

'Mimi disse...

O pior é sempre quando uma parte já "arrumou" o que se passou e a outra continua a não aceitar. Não é bom para ninguém.

Rosa Cueca disse...

Muitas vezes desligamos na esperança de ouvir o telefone tocar de novo.

No fundo estamos rendidos às evidências, mas continuamos a esperar que nos venham buscar, que lutem por nós, que nos mostrem que nos querem.

Porque existem tantas e tantas pessoas com quem nos cruzamos todos os dias, mas há sempre alguém que se destaca, que nos prende e nos faz sentir. Que nos lembram que vai haver um dia em que o coração vai bater mais forte ;)

Patrícia Lara disse...

Olá, André!

Passando para atualizar a leitura. É sempre bom ler uma boa crônica e você escreve muito bem. Parabéns, de novo!

Te desejo uma ótima semana.
Abraços,
Patrícia Lara

messy disse...

Não vou dizer mais do que aquilo que acho necessário, em uma palavra: perfeito!

Tens, mesmo, jeito com as palavras (:

*

Lakshmi disse...

Não desligues..
Não ainda!
Se ainda as recordações bailam assim, numa memória que parece distante, mas não é assim tanto...
Não desligues...
Desliga quando deixares de ouvir as ondas e sentir o cheiro da maresia...

Palavras linda André...verdadeiramente lindas, de alguem que sabe o quanto custa desligar!
Beijo
Lak

Anónimo disse...

Hi :)
ás vezes, sem darmos conta, revivemos passados a ler um texto , mesmo que as personagens estejam invertidas, consumimo-lo até á ultima letra e numa inquietação empolgante devoramos a sua mensagem que se desfaz em lagrimas saudosas. Assumi o papel de quem te telefonou, rememorizei momentos, chorei.

um excelente texto em que me consigo encaixar plenamente, continua.

Um beijinho ,
● BlackDreams * (:

Brid disse...

Já tinha saudades destes textos tão bonitos ^^

Acho que é um texto bastante forte, mas tb real, pelo menos para muitas pessoas. Está perfeito como sempre :)

Beijinhos*

Anónimo disse...

Parabéns, está muito bom este texto. Ando de tal modo sensível que fiquei em lágrimas.

:)

Anónimo disse...

Esqueci-me de dizer que privatizei. Se quiseres continuar a seguir o meu blogue é só enviar mail para sapatosdelacinho@hotmail.com

Chamem-me o que quiserem - desde que me chamem. disse...

BOM REBELDE:
MANDA-ME UM EXEMPLAR DO TEU LIVRO PLEASE!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! (Fico IMpacientemente à espera)
KISS

L' disse...

texto espectacular :D
és craque (:

Vou seguir ^^
Beijo*

I Believe disse...

Ñ li o texto ainda, mas o inicio cativou-me, estou de passagem, mas volto p "ler-te", entretanto passa no blog, tens lá um miminho***

Bejocas***

'stracci disse...

Este texto fez.me pintar quadros mentalmente! São palavras tão palpáveis que mal se acredita que são apenas palavras. Adorei!

Lexy disse...

A tua escrita flui directamente para as feridas,para os remédios e para a vontade de apagra memórias ou guardá-las com ternura.Nunca esperei ler esta frontalidade ou tão pouco senti-la.É deveras um privilégio prender-me nas palavras que escreves.Felicidades te desejo com a certeza de seguir atentamente cada post:)

M.C disse...

Cada palavra.Cada sensação descrita.Cada silencio..
Percebo que um adeus seja complicado de ser dito..ainda que saiba que na maior parte dos casos é apenas um até já.
Se esta história ainda te fizer,por momentos ser feliz,espero então que se torne num breve retorno.

L.A disse...

Pouco mais posso dizer senão que me escreves-te a alma...

...E quantas vezes tambem não desliguei eu, na esperança (não na ilusão) que o retorno da chamada, fosse um sinal que do outro lado, tambem ainda nao terminou...
Mas o telefone nao toca, o outro não se importa, o amor não e' mais correspondido. Acabou. Mas no fim admites, ja sabias isso, apenas era mais facil pensar que nao...

Fico colada ao que escreves...Vou seguir! (:
beijos

- aChousa disse...

- um excelente texto , talvez o preferido em que me consigo encaixar plenamente, continua.

Um beijinho
-aChousa

valentina pereira disse...

encontrei este blog por mero acaso. Comecei por ler os ultimos registos na diagonal: "isto é enorme!", até que os meus olhos se fixaram neste. Li e reli. Senti cada linha que escreveste, os meus parabéns! Vou seguir *

'Mimi disse...

Só para avisar do selinho (http://my-dance-floor.blogspot.com/2009/09/selinho.html) :)

Este continua a ser o texto que mais gosto :D

Daniela e Yolanda disse...

Um texto magnifico.
Adoramos todo o teu blog.
Vamos segui-lo com atençao ;)