quarta-feira, 2 de junho de 2010

Tenta


Por vezes existem tempos verbais que não se conjugam verdadeiramente. Temos que tentar, recomeçar, reconstruir vezes sem fim. O vento cortante derruba-nos do cavalo ilusório. Derrota-nos numa batalha às portas de uma amargura vã, já conformada de tanto desmedido derrotismo que ostenta. Prenúncio de lágrimas que caiem poço abaixo no sentido inverso, alojando-se nas entranhas mais profundas. Apesar do percalço, não dizes adeus. Não, ainda não. Sentes-te derrotado como por momentos. Uns segundos preciosos e recupera o fôlego imprescindível. Persistes, voltas ao ponto de partida, mesmo que agora caminhes sem a companheira indispensável de outrora, fé. Não desesperas, na exacta altura do caminho, invariavelmente acabará por se juntar a ti. Será arma de arremesso, em mais uma tentativa concisa e empenhada de derrubar o castelo de cartas disforme que aparenta um desequilíbrio latente, a quem dele se abeirar.

Na passagem arruínas por completo um candeeiro altivo que no lusco-fusco se alumia. Apesar de todas as condicionantes, queres ser tu a sobressair no centro do nada, sem luz alguma que te ofusque. Nem mesmo o luar te acalenta. Passo ente passo, aproximas-te de um apeadeiro, ao qual não cedes à tentação de descer. Interrogas-te e encolhes os ombros em sinal de um persistente desinteresse, que teima em não abandonar a figura do teu Eu - menor, aos olhos de um espelho de proporções desajustadas.

Já te convencestes inúmeras vezes do oposto, mas encontras-te precisamente no mesmíssimo lugar de então. É irónica a retórica do acontecimento. Mas aqui estás tu. Já cá estiveste tantas vezes, que arriscas a ditar os recantos de cor para uma plateia invisível, num ditado constrangido e contínuo. Conheces os cantos à casa, mesmo a olhos fechados. Abres com sentimento de posse, uma janela ao acaso que fora deixada ao abandono, por outros que dela se desinteressaram, ou venceram o aparente dilema equacional, que não consegues resolver. E se fosse apenas mais um dos pesadelos, dos quais dificilmente acordas? Buscas ao acaso uma cara um traço familiar, que te preencha, que te proporcione uma sensação de alívio casual. Vês-te por momentos, como carta fora do baralho. Um peão sem valor por qual pagar, que todos desdenham. O som mudo que ouves caminha a passos largos para um final estridente. Se te dessem agora a mão, provavelmente saltarias para um qualquer abismo incógnito, sem pestanejar, qual pacto maligno.

Mesmo sem noção ostentas uma força interior ínfima. Uma faceta reveladora, que te obriga e impele a pegar na caneta que escreve na folha virgem os passos do destino de almas errantes. Apercebeste que te ti, dependem outros que tais. O ser solitário que aparentas ser, desdobra-se por múltiplas faces, que dão vida a corpos que caminham em direcções conjuntas. Confluem para a mesma paragem que agora te parece à vista, menos turva. Suportas a dor, uma e outra vez, se necessário. É aqui que vences a guerra, mesmo já desarmado. Acreditas, e isso é o Início.

8 comentários:

Sophia disse...

É bem mais difícil dizer adeus :x

Anónimo disse...

Obrigada por revelares a tua preocupação para com os "outros". Gostei da forma como explicitas-te a complexidade do ser humano, nomeadamente as suas multifacetas e também o que tudo isso implica. Em concordância com a mensagem que penso q o teu texto quer transmitir, defendo que devemos lutar contra os nossos receios e resistir à tentação do "abandono", não so porque somos seres "dependentes" de pessoas que nos amam mas também pelo o facto de em simultaneo e antagónicamente sermos autónomos e desta forma apreciamos a dádiva da vida que nos foi dada de mão beijada.
The dead is peaceful and easy, the life is hard! XD

Chamem-me o que quiserem - desde que me chamem. disse...

Já tinha saudades! Bem-vindo ;)
(Para quando o book?)

Pipoca dos Saltos Altos disse...

Fiquei desarmada, muito bom, Beijos

Carmem Gomes disse...

Ah.. como adoro vir aqui no seu cantinho e ler suas rebeldias tão conscientes. Parabéns sempre! E seja sempre bem vindo ao tempo de viver mais. Beijos

Anónimo disse...

Gostei muito =,)

Fernanda Amábile disse...

incrível como conseguiste descrever tão bem um pedaço da alma humana. lindooo

Lexy disse...

E continuamos a correr na mesma. Profundo,belo,infinito. É assim que descrevo o teu sentido apurado para fazeres as tuas tão verdadeiras conjecturas. Aprecio para além do imaginável cada palavra que trazes. E continuo a agradecer por elas vezes sem fim.

;)