domingo, 19 de setembro de 2010

Broken Garden

I
Perdido neste insípido banco de madeira. Neste escuro e sujo assento, perco-me e encarno em mim o mundo exterior. Deixo-me ficar prostrado no jardim que floresce agora, fruto de um sol madrugador que trás com o dissipar da neblina matinal, a renovação do clico de vida e espécies que rebentam continuadamente. Observo mudo no mais caricato silêncio interior, acompanhado somente pela astúcia cirúrgica, o reboliço mecanizado que vigora e exala em minha volta. Alheio a qualquer espécie de interacção ininterrupta, rodopio suave e lentamente a mente. Que vai esboçando geometricamente a régua e esquadro, panoramas fictícios ao compasso do som. Melodia composta e delineada por acordes rectilíneos e estridentes que me vão chegando. Cismam em não mais chamar-me à razão. É um dia bonito, verbalizam-me repetidamente ao ouvido de forma semi-coordenada e melosa. Arremessando ao mesmo tempo tamanha ironia em trejeitos mal disfarçados. O céu do seu alto afigura-se aperaltado, vistoso até no seu jeito engalanado de uma qualquer manhã de veraneio. Alheio vai reinando de cima no seu trono raiado a amarelo-torrado. Cá em baixo, vou até onde a minha caneta me leva, vagueio por vales de folhas de papel esbranquiçadas, que só em mim flutuam fantasiosas.

II
Já esqueceu uma fugaz e desgastada fábula arrojada, que em tempos remotos, teve para si como totalmente sua. Desígnio de vida, carregado junto do seu peito despido e queimado pelo desenrolar dos dias vãos de chama. Era na realidade fogo que consumia e ardia em volta de si mesmo. Era a chama fugidia e gasta que o aquecia, nas noites mais vincadas de frio árctico. O vento zunia-lhe mortífero aos ouvidos, era como que um inverno glaciar fora de horas, deslocado do relógio da sua estação de origem. O conto perdido fora alvo de um atentado ao pudor. Fora manietado. Elaborados planos foram alçados de forma arrojada para o desmoronar por completo, como um todo. Qual castelo de cartas pouco estanque. Foi tudo, não foi nada. Desvaneceu-se para logo de seguida, voltar a erguer-se com a força abrupta. E por fim extinguir-se, deixando atrás dele rasto de estilhaços dolorosos. Deixou de ser Fénix por um dia que durou uma eternidade. Deixou, por se cansar de voltar a reerguer das cinzas, por se cansar de sonhar. No dia em que se esqueceu de sorrir, desvaneceu-se permanentemente. Hoje é figura horripilante, que caminha descalço sob o solo moído e abrasador das tenebrosas trevas. Resiste debilmente à luz solar que o apoquenta, queima-lhe as pálpebras cansadas e desgastadas de jornadas sumidas. Já esquecida ficou a doce sensação do prazer de contemplar sem nada requerer em troca. Hoje beija descrente o lado negro, dá o braço de bom grado às forças malignas, descendo a avenida. Destila impotente ódio no olhar vazio, escurecido. Despreza o mínimo sinal de compaixão, ou mera bondade. Afoga-se na imensidão da fogueira dos seus inúmeros talentos, empoeirados e esquecidos. Encostados à viola que não é tocada. Aos discos de vinil, que jamais ninguém ouvirá. Dá um trago e mergulha em si, escorrega num mundo sadio e cru. Vê-se refletido num espelho quebrado, com uma célula ínfima de uma equação complexa, sem solução à vista. Sem meios, sem fins, adivinha e antecipa um final precipitado. Já antes anunciado como tragédia grega. Se pelo menos tudo fosse tão mais fácil, como rebolar na relva fresca e relaxante do tapete verdejante do jardim. Deixar o cabelo esvoaçante e desalinhado ao vento sem preocupações de maior. Vestir-se debutante de esperanças e correr sem propósito. Correr com uma criança despreocupada que abre os braços ainda débeis de movimento organizado para abraçar o mundo novo de experiências. Ou o miúdo vivaço, que cheio de ilusões, chuta uma bola corroída, impregnado de fé nos seus anseios e sonhos ainda não reprimidos.

III
Lá atrás, em tempos idos, todos fomos assim. Partíamos risonhos à velocidade da luz da ombreira da janela do nosso quarto e descolávamos. Descolávamos em direcção ao nada, mas para o nosso tudo que idealizávamos. Partíamos para não mais regressar ao nosso próprio reino encantado. Reino que agora, só muito de fugida ainda visitamos de forma comprometida.

4 comentários:

Mafalda disse...

Tens toda a razão em tudo o que me escreveste. Temos segredos e segredos. E os que mais nos moem o coração, são aqueles que contemos com mais força, que guardamos só para nós, porque neste caso, quando um outro sabe, não nos amolece o coração por partilharmos, traz sim, a dor de volta. Partilhar é como nos atacarmos, atacarmos o nosso coração.

Vim agora ler tudo o que tenho perdido neste maravilhoso cantinho e apaixonei-me, outra vez. Porque tens o dom da palavra e eu gosto de as ler. É sempre bom passar aqui, é sempre bom ler-te, é sempre bom receber um comentário teu. És grande, és forte. E tens umas palavras lindas.

Catarina Vasconcelos disse...

Parabéns pelo blog! Estive a ler e gostei muito, escreves muitissimo bem, parabéns!

Marta disse...

Tens muito jeito, mesmo!

L.A disse...

Desculpa por demorara a responder a todos os teus comentarios, mas nao tenho andado com muito tempo e cabeça para o blog.
Quanto aos elogios que me tens feito, nem sei que dizer :$
É uma sensação optima para qualquer pessoa saber que alguem gosta do que escrevemos, ainda mais se esse alguem for alguem que escreve (como ja disse antes e nao me canso de dizer) dessa maneira magica!
Um muito obrigada por tudoo :')

p.s : adoro mais este post, que como todos os outros, genial.